Por Chico Alves
Mais importante que alcançar sucesso de público, de crítica e premiações internacionais como o Oscar (melhor filme estrangeiro) e o Globo de Ouro (melhor atriz, para Fernanda Torres), o filme “Ainda estou aqui” reacendeu o debate sobre a ditadura empresarial-militar que vigorou 21 anos no Brasil e causou a morte de Rubens Paiva.
A obra provocou discussões relevantes sobre as circunstâncias que levaram ao golpe de 1964 e sobre aqueles que colaboraram com o regime de exceção. A Lei de Anistia está sendo reconsiderada, algozes daquela época estão sendo “escrachados” e há outras consequências positivas.
É o momento perfeito, portanto, para lembrar um dos setores que mais incentivaram a quartelada e apoiaram a ditadura militar: a grande imprensa.
Triste ironia é que um dos principais jornais a fazer a defesa do regime e negar as torturas e homicídios cometidos nos porões do governo dos generais foi justamente O Globo, que pertence ao mesmo grupo empresarial da Globoplay, que produziu o filme de Walter Salles.
Seja nas manchetes ou nos editoriais, o jornal da família Marinho pintou os militares da época como patriotas que combatiam o “comunismo” de forma enérgica, porém dentro da legalidade. Foi o que estava escrito no editorial publicado na edição de O Globo de 18 de junho de 1970, sete meses antes de Rubens Paiva ser levado de casa para ser assassinado.
O texto comentava a libertação de 60 presos políticos que foram trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, pelo cônsul japonês Nobuo Okushi e pelo embaixador alemão Ehrenfield Von Holleben. Sob o título “A campanha e os fatos”, o editorialista do Globo desenvolveu 12 parágrafos para ressaltar que quase todos os presos políticos que viajaram para a Argélia saíram da cadeia aparentando excelente estado de saúde física e psicológica — com a exceção de dois –, o que provaria, segundo o autor, que era mentirosa a tese alardeada no exterior de que o Brasil vivia sob uma ditadura sangrenta.
É o que se lê no trecho final:
(…) “Dos 60 terroristas trocados pelos três diplomatas sequestrados no Rio e em São Paulo apenas dois não estavam com boas condições físicas: um rapaz de origem japonesa e a moça que desembarcou em Argel numa cadeira de rodas. Torturados? Não. O primeiro foi capturado por acaso nas proximidades de São Paulo desacordado dentro de um automóvel que dirigiu e que capotou. Portanto, foi vítima de um desastre. Quando socorrido, as autoridades encontraram armas de guerra no carro e após identificação do motorista comprovaram a filiação deste ao ‘aparelho’ terrorista.
A moça reagiu a bala à voz de prisão ferindo um policial. Recebeu um tiro que atingiu o centro nervoso. Os dois casos únicos de terroristas que chegam ao estrangeiro em condições físicas imperfeitas foram estes.
As fotografias do embarque dos quarenta no Galeão mostram pessoas sorridentes, desinibidas, sem quaisquer sinais externos de consequência de trauma psicológico. Onde o lastro da campanha mundial contra o Brasil — apresentado no exterior como um país que levou a truculência ao poder supremo?
Outra observação: nos seus manifestos e comunicados, os terroristas falam não apenas em torturas, mas também no assassínio de presos em quartéis e delegacias. Entretanto, as listas de resgate não apresentaram qualquer baixa. Os que foram pedidos para a troca apareceram. Os próprios terroristas estão sendo o testemunho vivo do caráter calunioso da campanha que se montou contra o Brasil em algumas das importantes capitais do ocidente”.
Sete meses depois da publicação desse editorial no Globo, agentes da repressão invadiram a casa de Rubens Paiva e o levaram para um local desconhecido dos parentes, onde acabou assassinado. Também Eunice Paiva e uma de suas filhas foram levadas para a masmorra e sofreram maus tratos.
A história desse caso é contada tanto no livro quanto no filme “Ainda estou aqui”, produzido pela Globoplay.
O destino trágico de figuras como Rubens Paiva e outras vítimas da repressão certamente teria sido diferente se grandes veículos de comunicação, como o jornal da família Marinho, não tivessem desempenhado o papel de cúmplices dos governos autoritários, que os fizeram lucrar tanto.
É certo que O Globo divulgou um mea culpa no dia 31 de agosto de 2013, sob o título “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. A atitude seria elogiável se o texto quilométrico publicado na época não tivesse o caráter de justificativa para a posição política do jornal, como se as circunstâncias ideológicas não deixassem alternativa, e de bajulação ao fundador do periódico.
“Em todas as encruzilhadas institucionais por que passou o país no período em que esteve à frente do jornal, Roberto Marinho sempre esteve ao lado da legalidade”, diz o texto de 20 anos atrás, que deveria ser uma autocrítica. A própria motivação do mea culpa já desmente essa pérola de puxa-saquismo.
Nenhuma frase dessa suposta admissão de culpa é dedicada a lamentar a tortura e morte das vítimas do regime, como Rubens Paiva.
Ainda que fosse um pedido de desculpas exemplar, não apagaria a história: jornalões como O Globo, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e outros foram fundamentais para que a ditadura empresarial-militar mantivesse o Brasil sufocado por 21 anos.
No debate suscitado pelo sucesso do filme “Ainda estou aqui” falta dar mais destaque ao papel que a imprensa desempenhou em favor do regime militar.
O editorial publicado meses antes do desfecho terrível da trajetória de Rubens Paiva é um bom exemplo de como as empresas de jornalismo podem se submeter aos poderosos.
Manter viva essa memória pode ajudar a combater crimes semelhantes no presente e no futuro.
Deixe seu Comentário