“Fiquei viúva aos 40 anos, desempregada, com dois filhos órfãos: um de 10 anos e o outro de 11”, relembra a cearense Gê Costa sobre o fatídico dia 6 de abril de 2021. Naquela data, o esposo de 55 anos não resistiu às complicações da Covid-19, após passar 22 dias internado por causa da doença.
Além de uma das bases emocionais da família, ele era seu provedor financeiro. Como Gê ainda cursava o Ensino Superior e não tinha renda própria, precisou tirar os garotos da escola particular e lidar, ao mesmo tempo, com uma depressão pós-luto que durou quase três anos.
Para os dois adolescentes, hoje com 14 e 15 anos, o ciclo de mudança não passou alheio. “A dor é sem dimensão e não dá pra descrever os dias sem ele”, relata a mãe. “Os meus filhos sofrem muito com a falta do pai e da vida que tínhamos antes. Eu sinto que nas datas comemorativas o fardo pesa, principalmente no aniversário deles e no Dia dos Pais”.
Para a família Costa, a pandemia não acabou. Em apoio mútuo, buscam força uns nos outros “tentando recomeçar”. Gê, inclusive, tem buscado se aproximar da causa porque sabe que “existem crianças que perderam a mãe e o pai e hoje vivem em um novo seio familiar, precisando de auxílio financeiro e psicológico” para seguir.
Ela não está errada: a pandemia teve, e ainda tem, um papel avassalador na vida de crianças e adolescentes.
Esta é a segunda reportagem do especial Órfãos da Pandemia, que mostra o contexto social de famílias atingidas pela doença e o andamento de políticas públicas criadas (ou não) para atender esse público.
“Eles têm impactos na vida psíquica em decorrência do luto, do desamparo, do medo e de uma série de questões emocionais e de sociabilidade que decorrem da perda do cuidador principal”, explica Ângela Pinheiro, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec).
Para a psicóloga, o luto pela perda de um familiar querido é potencializado pela falta de um “rito cultural”, aquele em que a despedida ajuda a selar a dor. Nesses casos, do ponto de vista emocional, a palavra que define esse luto é a ‘perversidade’.
“Temos vários tipos, mas esse é perverso. A criança ou adolescente não sabe o que é luto, mas sente a falta, pergunta muito; às vezes, a história da ‘estrelinha’ não é suficiente porque ela pensa muito no concreto. É difícil de abstrair”, continua.
Ângela, uma das criadoras da Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes pela Covid-19 (AOCA), explica que o grupo definiu três dimensões para analisar o impacto na vida dos órfãos e mergulhar na profundidade do problema.
A primeira dimensão é a da representatividade legal, para entender quais são os responsáveis pelos cuidados dessas crianças e adolescentes. Na segunda, leva-se em consideração a segurança material e alimentar, para entender a quais dificuldades esses órfãos têm sido submetidos.
Já a terceira é a socioemocional, que tenta entender as peculiaridades que cercam o luto, como a sensação de desamparo, o medo do futuro e a sensação de tristeza. Entre as possíveis consequências desse quadro, a professora cita:
- depressão e ansiedade
- síndrome do pânico
- abandono escolar
- situação de rua
- exploração sexual
- trabalho infantil
- tentativa de suicídio
- desnutrição
Ou seja, sem um responsável direto pela educação, imposição de limites e transmissão de valores, os jovens perdem exemplos importantes para o próprio amadurecimento.
“Boa parte dos vínculos sociais se dá através da família, qualquer que seja a configuração dela. O nosso mundo psíquico requer, para um desenvolvimento mais pleno e íntegro, que tenhamos referências em quem confiar, a quem recorrer e quem amar e ser amado”, ressalta.
Abalos emocionais e financeiros
Entretanto, mesmo com a seriedade do tema, a realidade da assistência prestada a essas crianças e adolescentes fica distante do ideal, aponta ela. Entre os principais problemas, estão a falta de dados específicos e de regulamentação da representatividade legal. “Tem que ter guarda, tutela ou adoção: isso no Brasil é muito necessário para o acesso a serviços e benefícios”, lembra.
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É justamente no ponto da falta de dados que o acesso a benefícios e serviços simples esbarra. O promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij) do Ministério Público do Ceará (MPCE), Lucas Azevedo, cita a criação de políticas públicas efetivas nesse cenário como imprescindíveis para dar início a ações capazes de sanar os entraves citados por Ângela.
O que se sabe, segundo ele, é que não existem crianças órfãs por Covid-19 em acolhimento institucional; a grande maioria, supõe, acabou sendo acolhida por outros familiares, como tios, avós ou primos.
A criança precisa ter um representante legal, que é quem vai levar pro posto de saúde, providenciar a matrícula numa escola, que vai ser responsável por cuidar. Se você não tem essa guarda regularizada, esse representante de fato – tio ou tia sem guarda, por exemplo – vai ter uma dificuldade tremenda ou mesmo a impossibilidade de realizar esses atos.
“É um público que acaba ficando invisibilizado. A família extensa absorve a demanda do cuidado numa situação que muitas vezes é precária. Outra parte pode estar efetivamente na rua”, entende o promotor.
Azevedo lembra que, no interior do Estado, a situação pode ser ainda mais complicada. Por isso, desde 2021, uma cartilha elaborada pelo MPCE dá orientações sobre questões de guarda ou tutela dos órfãos. “Onde não existe Defensoria Pública, acabamos atuando também nessa frente”, reconhece.
A presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e Adolescente (CEDCA), Lorena Vítor, aponta que essa discussão já está em pauta desde a crise da pandemia e chegou a ser levada à Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, no início de 2024.
“O CEDCA vem apoiando ações, dialogando com representantes de coletivos e sociedade civil que trataram sobre o assunto, realizando encaminhamentos, orientando os municípios quanto à execução de ações e cuidados durante e pós-pandemia, e dialogando sobre os efeitos para as crianças e adolescentes residentes em nosso Estado”, aponta.
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Importância de políticas públicas
A preocupação com os órfãos é extensa, já que nem só a carência material tem influência na questão. “Todas elas foram enlutadas num processo de pandemia, então como está a saúde mental delas?”, questiona a assessora de relacionamento institucional da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), Lia Felismino.
Sabemos que a pandemia se encerrou enquanto questão de saúde pública, mas ainda não conseguimos avançar nessa política pública. Em 4 anos, acontece muita coisa na vida de uma criança e adolescente.
Se não há um balanço exato ou políticas públicas capazes de aprofundar a questão, a situação complica cada vez mais. Felismino, assim como outras autoridades, cita a importância da busca por uma melhora na atenção à saúde dessas pessoas, além do “facilitamento no acesso a programas de transferência de renda”.
Para os familiares ou responsáveis por crianças e adolescentes órfãos, a recomendação é judicializar a guarda. Segundo ela, diversos direitos podem ser assegurados com a ação.
“Para o exercício da vida civil, de acesso a direitos, eles precisam de representação. Pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), eles não podem exercer atos da vida civil. Se eu sou mãe ou pai, a representação deriva dessa relação. Na ausência dessas figuras, precisamos da formalização comprovando que sou a pessoa responsável”, complementa.
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