Junco é o nome que se dá a uma espécie de planta gramínea frequente em locais úmidos. É também o nome de uma antiga comunidade de Jijoca de Jericoacoara, no Litoral Norte do Ceará, situada numa área-chave para tentar compreender a disputa judicial de terras relacionadas à Vila de Jericoacoara, que veio a público em outubro deste ano. O problema é que Junco não existe mais: tornou-se um “povoado-fantasma” há mais de 20 anos.
O Junco ganha importância na discussão porque fica numa área localizada no limite sul do Parque Nacional de Jericoacoara. De um lado, antigos moradores dizem que ele marca o fim da fazenda do ex-esposo de Iracema Correia São Tiago. Do outro, a defesa da empresária garante que o povoado faz sim parte das terras pertencentes a ela, que se estendem até o litoral e cobrem boa parte da Vila.
A comunidade era composta por 11 casas, segundo Francisco Teixeira, de 69 anos, que comprou um lote por lá em 2001. Conhecido como “Dachaga”, ele batizou a propriedade de “Juncolândia” e promoveu uma série de melhorias, construindo instalações para criação de animais e uma caixa d’água para irrigação da agricultura.
Lá, aprendeu a dividir experiências com famílias mais antigas, como a de Francisco Marcelino das Chagas, 73, ou “Chico Ezequiel”, que nasceu e foi criado no Junco. A terra, porém, já era habitada desde a época de seu bisavô, afirma. “Isso aqui já tem mais de 100 anos”, garante.
O Junco tinha moradias, poço, escola infantil e até cemitério próprio. Tudo foi abandonado em 2002, após a criação do Parque Nacional (Parna) de Jericoacoara pelo Governo Federal. Mesmo identificada no Plano de Manejo do Parque, a comunidade foi extinta. Até hoje, os moradores não sabem quem mandou derrubar as instalações.
Na última segunda-feira (11), o Diário do Nordeste visitou a localidade, a cerca de 6 km da Vila e 300 km de Fortaleza, acompanhada por nativos e membros do Conselho Comunitário de Jericoacoara.
O Junco, atualmente, é de difícil acesso. Como se passaram mais de 20 anos desde a saída das famílias do local, a trilha de areia esmaeceu e a vegetação, densa e espinhosa, tomou conta dela. Para desbravá-la, foram usados carros de tração 4×4 e objetos para cortar os galhos secos ao longo do caminho.
Limite da fazenda
Acompanhando o grupo, estava Luís Zeca, 83, que diz ter trabalhado por 12 anos como capataz da fazenda de José Maria Machado – ou “Firma Machado”, como é mais conhecida pelos moradores mais antigos. A pé ou montando um burro, ele fiscalizava uma longa extensão de terra onde se plantava caju, legumes e até algodão.
Contudo, segundo ele e outros moradores, a firma tinha sim um fim antes de chegar à área do Parque. Embrenhado na mata, Dachaga encontrou uma estaca de cimento, popularmente chamada de “mourão”; segundo a memória deles, o objeto demarcava o fim da fazenda.
Cerca de 20 metros à frente, identificaram outro mourão, de cor diferente e quase soterrado pela areia. Este pertenceria ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão gestor dos parques federais brasileiros. Nenhuma das duas estacas tinha placa ou inscrições indicando quem seria o responsável por ela. Os desbravadores, porém, repetiam que um mourão marca o fim da firma, e o outro indica o início do Parque.
A defesa de Iracema Correia São Tiago, ex-esposa de José Maria e requerente das terras, reitera que as propriedades são devidamente registradas em cartório, respeitando diretrizes e normas legais. “Independentemente da ocupação de quem quer que seja, os limites da fazenda são os mesmos: começa no litoral e termina no córrego (da Forquilha)”, ressalta.
“Não é possível saber agora, tantos anos depois, se essas famílias citadas na matéria tinham autorização do sr. José Maria ou do administrador da fazenda, Antônio Tavares, para residir no local ou se essas famílias invadiram a área. A existência de eventuais moradores em algum ponto da propriedade não invalida os limites de onde ela começa e nem de onde ela termina. Apenas demonstra que existia uma relação cordial entre o sr. José Maria de Morais Machado com moradores da região”, informou à reportagem.
Cidade perdida
A equipe de reportagem seguiu viagem por mais 2 km nas trilhas acidentadas até chegar ao destino. Tecnicamente uma região de restinga arbórea e arbustiva, o Junco tem apenas resquícios de casas já quase escondidos pela vegetação. Em vários pontos, há telhas espalhadas pelo chão e poucas paredes de barro ainda de pé. Parte da estrutura de alvenaria foi soterrada e só aparece depois de alguma escavação.
Dachaga conduz o grupo, apontado de forma certeira onde cada lugar ficava. Ele adentra a mata sem medo, ainda que os galhos lhe cortem a pele dos braços e dos dedos. “Pelo gosto dos donos, ninguém tinha desmanchado casa nenhuma”, lamenta ao avistar duas pilastras que marcavam a entrada de sua residência.
“Tive que tirar tudo porque não podia criar nada dentro do Parque”, conta sobre as restrições impostas à área pela necessidade de preservação ambiental. Nem porcos, nem galinhas, nem mesmo agricultura de subsistência. “Depois que todo mundo saiu, as casas caíram todas. Ninguém sabe quem derrubou”.
Os moradores do Junco precisaram buscar novas moradias. Uns foram para a comunidade vizinha Lagoa Grande, outros para o centro de Jijoca. “Mas aqui foi a vida mais tranquila que tive”, confirma Chico Ezequiel, criado entre a restinga e as dunas. “A gente trabalhava de roça, comia o que plantava. Para chegar na praia, era pertinho”.
A indignação dos antigos moradores é clara: ninguém nunca apareceu reclamando a propriedade daquelas terras. Conheciam o nome de José Maria Machado, empresário que comprou terrenos ali próximos, na década de 1980, mas ele nunca apareceu para se apresentar.
“A gente sabia que ele era dono da porteira da fazenda até o Córrego da Forquilha, mas nunca houve um boato de ser dono daqui. O boato veio agora porque Jeri cresceu e criou valor”, acredita Francisco Dachaga.
Ele afirma possuir recibos de pagamentos feitos ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) referentes a parcelas do título de domínio da área, dos anos de 2001 e 2002. O antigo dono da área teria regularizado toda a situação antes de vender o terreno a Francisco.
“Se eles (os Machado) compraram, não era pra ter parado de vir (a cobrança)? Como é que o Junco tem dona?”, questiona, mencionando Iracema Correia São Tiago.
O Diário do Nordeste perguntou ao Incra se os imóveis do Junco realmente pagavam o imposto (se sim, quantos e em qual modalidade) e se o Instituto acompanhou alguma tratativa para reassentar as famílias.
A Divisão de Governança da Terra da entidade informou que consultas e análises sobre supostos pagamentos de impostos e situação cadastral de imóveis só podem ser feitas a partir de dados pessoais (CPF) dos proprietários ou detentores de imóveis rurais na comunidade.
Sobre o reassentamento das famílias, recomendou consultar o ICMBio sobre os procedimentos adotados em relação à criação do Parna. O órgão não respondeu até o fechamento desta publicação.
Plano reconheceu povoado
O Junco não está apenas memória dos moradores. No documento “Análise da Unidade de Conservação”, integrante do Plano de Manejo do Parque, aprovado em 2011, ele está devidamente descrito pela equipe técnica do ICMBio.
Segundo o documento, o local era um dos aglomerados populacionais, no interior do Parque, onde havia “ocupação humana de forma permanente”. Das três comunidades identificadas – ao lado do Mangue Seco e da Lagoa Grande -, o Junco era “a mais isolada”.
“Foi possível contabilizar onze moradias, dentre as quais, três estavam ocupadas e seis desocupadas. Duas moradias pareciam ser ocupadas sazonalmente. Três das casas desocupadas estavam demolidas parcialmente. Das três casas ocupadas, observou-se o uso da terra para lavouras de subsistência e, também, mandioca, plantios de coco, cajueiros, e uma pequena criação de cabras”, detalhou o texto.
Ainda conforme o levantamento oficial, não havia energia elétrica, e o abastecimento de água se dava pelo uso de cacimbas. Já à época, os técnicos informaram que as condições de habitação e de acesso eram “precárias”.
O Diário do Nordeste também perguntou à Defensoria Pública da União (DPU) se foi aberto algum processo de indenização para os antigos moradores do Junco. A entidade afirma que “instaurou um procedimento de assistência jurídica gratuita para investigar eventuais violações decorrentes de um acordo firmado entre uma empresária e o Governo do Ceará”, atentando sobre o impacto nas comunidades locais.
A DPU oficiou outros órgãos públicos solicitando informações e documentos que possam esclarecer o contexto do acordo e as implicações para os moradores. “Esse processo de coleta de informações é fundamental para garantir transparência e assegurar que direitos constitucionais, especialmente os das comunidades tradicionais, sejam respeitados”, declarou.
Para realizar uma análise mais precisa de grupos tradicionais na área, a DPU programou uma visita à Vila de Jericoacoara no dia 25 de novembro. No encontro, deve se reunir com os moradores para escutar relatos, entender demandas e verificar as condições locais.
Para o Conselho Comunitário de Jericoacoara, a visita é uma oportunidade para “dar evidência à injustiça que foi feita com o Junco”.
Memórias demolidas
Dos idosos aos mais jovens, as lembranças do Junco ainda estão frescas. Wellington Paulo, de 29 anos, também nasceu no povoado. Em casa, com auxílio de parteira. Cresceu correndo na trilha de areia, comendo peixe e coco, tendo aulas na pequena escola que atendia aos pequenos. Subitamente, tudo desapareceu por volta dos 7 anos de idade.
“A melhor infância a gente passou aqui. Eram brincadeiras tradicionais, a gente ajudava a criar animal. Nossa diversão era essa”, relata o educador físico, criado pelos tios e avós. Os primeiros ensinamentos, ele recebeu na sala do “tio Carlinhos”, professor da comunidade que educava em casa, no improviso mesmo.
Mais uma vez, Wellington ressalta: os moradores do Junco sobreviviam da terra, do que conseguiam plantar e colher. Por isso, para a maioria, o processo de saída do local foi tão difícil.
“Quando as famílias se foram, tudo que tinham ficou aqui. Hoje, eu sou um dos que mora de aluguel. Sem indenização, sem aviso… Ninguém veio procurar a gente”.
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Havia projeto para o Junco
O destino real do Junco não cumpriu o que estava previsto no Plano de Manejo para a área. No documento “Planejamento da UC (Unidade de Conservação)”, descritor dos princípios, normas e atividades a serem desenvolvidas no Parque, ele foi listado como uma das 17 Áreas Estratégicas Internas (AEI) do equipamento.
Conforme o documento, a AEI Junco consistia numa pequena comunidade, com várias casas desocupadas, inserida no interior das restingas do PNJ, “com grande possibilidade de atividades de visitação, desde que compatíveis com as normas do zoneamento”.
Sim, havia estratégias de visitação no Povoado do Junco, desde que houvesse a instalação de infraestrutura, módulos sanitários ou equipamentos para recepção de visitantes; e viabilidade e meios de alimentação e pernoite.
Entre os resultados esperados com esse processo, ainda segundo o Plano, estavam:
- Problemas fundiários regularizados
- Cercamento implantado
- Atividades de recuperação ambiental implantadas
- Visitação ordenada à área estabelecida
Para que isso fosse possível, há um trecho citando a possibilidade de “regularizar a situação fundiária das terras que compõem a comunidade do Junco”, além de “levantar, indenizar, realocar e recuperar locais atualmente ocupados”.
Após esse processo, poderia-se:
- Demarcar e cercar os limites do PNJ nas áreas da AIE Junco;
- Elaborar um projeto de recuperação da área, priorizando ações que visem à regeneração natural;
- Incentivar e proporcionar a observação de fauna e vida silvestre;
- Avaliar a utilização das casas para visitação, analisando a viabilidade de implantação de um museu no local e decoração retratando os modos de vida tradicional;
- Projetar uma trilha ao longo da estrada do Junco e nas proximidades das lagoas.
Porém, 22 anos depois, nada disso saiu do papel e marcou as vidas de Francisco, Luiza, Raimundo e Chico Ezequiel, Otília, Pedro Zeca, Erotilde, Chagas e Valdemar Vital e Antonio Baixo. “Essas eram as casas principais, todo mundo unido”, lembra Dachaga. “Eu me sentia à vontade. Da minha chácara nunca me roubaram nem uma melancia porque era bem vigiada, só por gente boa. De repente, tivemos que nos mudar”.
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