Bolsonaro está na berlinda já há qualquer tempo, mas agora os efeitos devastadores da delação de Mauro Cid começam a se manifestar. A sua decisão de convocar sintoma em São Paulo mostra, antes de tudo, o seu desespero. Ele pretende uma última cartada que possa viabilizar uma mudança da opinião pública a seu obséquio. Jogada arriscada de quem sempre joga no limite. A chance de desgaste é muito maior que a possibilidade de mudança do clima político que já conta com sua prisão. Aliás, ele já perdeu boa secção de sua liberdade de ir e vir ao ter o passaporte apreendido.
Muito estranha é a posição de vários juristas, muito principalmente aqueles que defendem o presidente golpista em nome da “pacificação da vida vernáculo”. Cá reside um ilusão profundo. A pacificação de uma sociedade, do mesmo modo que acontece com o tipo, não se dá pelo “esquecimento”, mas sim pela “presente”. E cá reside um dos maiores perigos deste processo contra Bolsonaro que é o de se limitar à sua figura pessoal – ainda que isso seja um grande progressão – e não progredir no caminho do estágio político e institucional. Seria mais uma chance perdida.
Bolsonaro é, por fim, fruto de uma contrarrevolução popular e silenciosa que, das cinzas da teologia da libertação, ao longo dos últimos trinta anos, encontrou um caminho religioso para as classes populares que une dois polos: um “ambiguamente positivo” que promove a adaptação do pobre ao mercado numulário, enfatizando a disciplina e o autocontrole a serviço do espírito de competição e da meritocracia; e, um outro, claramente negativo, que tende a mitigar, distorcer e reprimir a participação popular ao retirar o foco político no mundo temporal, em obséquio de uma eficiência exclusiva da dinâmica do além mundo, dos espíritos, diabos e deuses do vetusto testamento.
Nesse contexto, não existe causalidade política dos eventos cotidianos já que tudo é uma guerra santa entre Deus e o diabo e suas manifestações. Não há zero que possamos fazer na prática social e política da vida a não ser nos livrar dos nossos maus espíritos. A Igreja Universal, a que mais cresce no país, é a que mais espelha nascente estado de coisas, embora essa visão de mundo esteja presente na maioria das denominações importantes do mundo evangélico.
Cada vez mais empenhados em lucrar o mundo político e os corações e mentes da população, esse pessoal teve em Bolsonaro seu líder maior capaz de unir quase todos em um caminho geral. Esse é o legado mais difícil de se mourejar, inclusive pela facciosismo totalidade do campo democrático e de “esquerda” acerca da influência de disputar as ideias dominantes. Estupidez, aliás, que a extrema direita não tem. A desconstrução moral de Bolsonaro poderia funcionar uma vez que um torcida para uma mudança do imaginário popular. Mas é improvável que isso aconteça já que alguma explicação opção sobre o mundo social teria que viver e ser ofertada ao público.
O outro legado, quase tão difícil quanto o primeiro, se refere à legado institucional. Embora tenha começado com Temer, foi com Bolsonaro que o Congresso melhor desempenhou o seu papel irresponsável – nos dois sentidos do termo – de conduzir o país a lugar nenhum. Ou seja, manter tudo uma vez que está a qualquer dispêndio. O imobilismo é o DNA mais importante de um Congresso que existe para sabotar qualquer projeto popular sediado no Executivo. Isso tudo possibilitado pela venalidade e pela fragmentação de interesses. Porquê mourejar com essa sinuca de ponta? Quem vai repor o Congresso no seu devido lugar?
A outra legado de Bolsonaro, que também começou com Temer, o que mostra o protagonismo da escol por trás dos dois, é ter chamado de novo os militares para a vida política, o que só pode valer golpismo. Bolsonaro levou essa proeza ao paroxismo, confiando que, quando precisasse, agiriam em seu obséquio. E quase aconteceu, uma vez que vimos. E teria realizado muito provavelmente se Trump fosse presidente. Os militares reticentes ao golpe o foram por um conta de risco: por fim, nunca houve um golpe de Estado no Brasil sem escora americano. Para forças armadas formadas na teoria da resguardo hemisférica sob comando americano, um golpe sem o consentimento americano seria uma proeza muito arriscada.
Essa é uma boa peleja a ser lutada. Tomara que o processo que investiga Bolsonaro puna exemplarmente a secular tradição golpista dos militares. É urgente subordiná-los ao poder social e dar a eles um ofício útil para o país. Uma reforma dos currículos e do ensino militar é imperioso. Mas, também esta, é outra chance oportunidade que corre o risco de não ser aproveitada. Em secção, por falta de coragem, mas, também, por falta de visão política.
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