Jairo Costa Júnior — Projeto Colabora
Na calabouço do trabalho do Carnaval em Salvador, os cordeiros compõem a família mais baixa da numerosa mão de obra que ocupa as ruas da capital baiana no período da folia. Ao lado dos catadores de latinhas, integram o que se poderia invocar no vocabulário marxista de lumpemproletariado (estrato mais degradada dos trabalhadores) da sarau de maior popularidade do planeta, inferior até dos ambulantes e garis da Limpurb, a empresa pública de limpeza urbana da cidade.
A cada fevereiro, o batalhão formado por aproximadamente 15 milénio trabalhadores, segundo os cálculos atuais do Sindicato dos Cordeiros do Estado da Bahia (Sindicorda), suporta a rotina de, pelo menos, oito horas de desfile para prometer que os blocos de trios sejam espaços exclusivos de foliões dispostos a remunerar (dispendioso) pelos abadás – além, é evidente, de asseverar os lucros dos empresários que comandam o segmento. Muitos cordeiros dobram essa jornada e trabalham em dois blocos por dia, para prometer uma renda maior durante a folia baiana.
Com mais de três décadas de experiência nas cordas, Valdenice Santos, 60 anos, esmiuça em detalhes o que torna a atividade o pior ocupação do Carnaval.
“É trabalho feito na base da humilhação. A inaugurar pela forma de pagamento. Sempre com filas imensa, brigas e muita confusão para receber dos blocos”, inicia Nice Cordeira, uma vez que se tornou conhecida em Praia Grande, bairro do Subúrbio, o mais populoso bolsão de pobreza e miséria de Salvador.
Matriarca de uma família onde praticamente todos são cordeiros no Carnaval, Nice faz uma viagem a um tempo em que as condições de trabalho eram infinitamente piores que as de hoje.
“Quando comecei a trabalhar com blocos, lá por 1993, 1994, não existiam regras. Era um grupo de gente de pé descalço, sem luva. Não tinha recta nem a chuva. Também não havia valor mínimo de diária. Cada um pagava o que queria. E ainda davam calote”, lembra.
O quadro de hoje é menos degradante. Mas antes de mostrar os avanços – grandes em relação ao pretérito, mas pequenos no que diz saudação à humanização das relações de trabalho -, vale abordar o que não mudou desde quando o padrão atual da folia soteropolitana foi consolidado.
“Sofremos ainda violência de quem está do outro lado da corda. Provocações, agressões. É generalidade que um endemoniado apareça do zero e dê um sopapo na rosto do cordeiro”, afirma Nice.
“Há também quem passe a mão em uma moçoila que está trabalhando com roupinha mais apertada na corda ou tente catrafilar a cordeira na marra. Porquê segmento das mulheres trabalha com o namorado, marido, pai ou irmão, acaba em bulha”, acrescenta.
Ela conta que seu fruto, Joelson Santos, anos detrás reagiu fisicamente quando um folião da pipoca tentou beijar à força sua esposa. “Há também os cordeiros brigões, mas eles são poucos. A maioria é da silêncio. Vai lá para prometer um verba extra no Carnaval”, emenda.
Para o presidente do Sindicorda, Mateus Santos, a violência é resultado de um tipo de apartheid carnavalesco.
“Do lado de dentro das cordas, está o folião que pagou pelo abadá e quer curtir separado do povão. Do outro, estão aqueles que não podem bancar o conjunto. No meio dos dois, está o cordeiro”, explica, ao sobresair também que a violência policial contra a categoria, embora exista, se tornou menor nos últimos anos.
“Antes víamos com frequência cenas de PMs agredindo cordeiros com cassetetes. Isso praticamente deixou de viver. Muito por justificação da vigilância ativa da prelo a casos uma vez que esses”, emenda. Para quem testemunha anualmente a rotina dos cordeiros há duas décadas e meia, caso deste repórter, ainda impressiona o dobrado que corta a turma da corda por tão pouco e sob níveis extremos de desgaste físico e emocional.

Cordeiros durante desfile de trios elétricos em Salvador: barreira de contenção para separar quem pagou dispendioso por abadá dos foliões comuns (Foto: Reprodução)
DIÁRIA DE R$ 80 E DOIS PACOTES DE BISCOITO
A odisseia dos cordeiros começa a partir do momento em que se é arregimentado pelas empresas de segurança, grandes atravessadores de mão de obra para os blocos. São elas as responsáveis por identificar líderes, uma vez que Nice, e subcontratá-los para montar grupos com 50 e 200 pessoas interessadas em enfrentar horas a fios segurando a fluente de corda grossa que mantém, em um imenso espaço retangular, os vips longe da tamanho.
“É uma quarteirização. O possessor de conjunto terceiriza a segurança para uma empresa de segurança, que quarteiriza a contratação de cordeiros para os chamados líderes, que recebem uma ponta a mais por cada cabeça (profissional convocado). Por região o Subúrbio é a grande fornecedora de mão de obra”, detalha o presidente do Sindicorda, que ainda atua na pista, só que agora uma vez que coordenador do pessoal das cordas, e uma vez que sindicalista, avante da tropa da fiscalização.
A partir da contratação, é que começa o trabalho pesado. Primeiro, é preciso ter o verba do transporte e estar sustentado para chegar duas horas antes na concentração do conjunto. Depois vem a segmento mais difícil: segurar o tranco por no mínimo seis horas de apresentação, sem intervalos para sota.
Embora não sejam segurança, os cordeiros formam a primeira barreira de contenção, cuja intensidade da pressão sobre ela vai de conciliação com a atração. Quando o trio começa a se movimentar, a longa jornada de trabalho – muitas vezes sob sol potente e temperatura perto dos 35 graus, outras por baixo de chuva – não tem mais pausa; a cada Carnaval, repetem-se desmaios devido ao calor.
Assim uma vez que Nice, o cordeiro Edson Conceição Damasceno, 32 anos, também de Praia Grande, elenca Bell Marques (ex-líder do Chiclete com Banana), os pagodeiros da orquestra La Fúria e o cantor Leo Santana, Timbalada e Ivete Sangalo uma vez que as cordas mais árduas de segurar.
“Trabalhei ano pretérito no Vumbora, conjunto de Bell, e foi pesado demais. Era muita gente empurrando, ameaçando. É chuto, cotovelada, tapa e até sopapo. Tem que ter sangue no olho”, recomenda.
Toda cruzada dos cordeiros em procura de um proveito a mais no Carnaval se resume, por cada dia trabalhado, a R$ 80 reais, dois pacotes de biscoito, um guloseima e outro salso, uma lata de refrigerante ou um suco de caixinha, quatro garrafas de chuva mineral de 500 ml, para blocos que saem antes das 17h, e três para aqueles que partem a partir das 17h. Mais protetor auricular, luva e camisa válidos para todos os dias.
Esses foram os direitos assegurados graças ao Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado em 2017 entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Associação de Blocos e Trios (ABT), entidade que concentra os empresários da folia na pista, depois uma longa queda de braço travado pelo Sindicorda contra as más condições enfrentadas pelos cordeiros e o deserto de leis que regia as relações do patrão com o subempregado.
“As condições, nem de longe se assemelham ao pretérito. Hoje existe piso, que cresceu leste ano em 35%. Ninguém reajustou tanto assim no período. Não existem mais calotes. Passamos a fornecer os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) e a satisfazer todas as determinações do TAC, incluindo a sustento definida no conciliação. Há blocos, uma vez que o meu, que pagam diária pouco maior”, garante Washington Paganelli, presidente da ABT (Associação de Blocos e Trios) e do Parecer Municipal do Carnaval (Comcar), instância deliberativa máxima da folia em Salvador.

Povaléu de abadás cor de rosa acompanha trio elétrico no Carnaval de Salvador: espaço privilegiado na folia custa dispendioso e é guardado por cordeiros (Manu Dias/Governo da Bahia)
ABADÁS CHEGAM A R$ 5 MIL
Sócio e principal executivo do conjunto As Muquiranas, um dos mais bombados, Paganelli afirma que contratará 800 cordeiros para os 2,5 milénio foliões que pagaram R$ 750 pelos abadás para os dois dias de desfile.
“Estamos definindo se será R$ 90 ou R$ 100 a diária. Pode parecer pouco, mas não é. Há blocos que vendem abadás a R$ 100 por dia. Esses precisam manter o negócio de pé também. Para estes, é impossível remunerar mais de R$ 80”, ressalta. “Mas o importante é que todos os blocos filiados à ABT vêm cumprindo o TAC”, assegura.
Embora existam muro de 200 blocos cadastrados para atuar no Carnaval e nos dias de pré-folia na capital, Matias Santos diz que unicamente 19 cumprem integralmente o TAC. Entre os quais, As Muquiranas (La Fúria e Psirico), Crocodilo (Daniela Mercuri), Coruja (Ivete Sangalo), Me Abraça (Durval Lélys), Largadinho (Claudia Leitte), Olodum, Conjunto da Anitta, Vumbora e Camaleão, ambos pilotados por Bell Marques. Todos pertencem à lista dos mais cobiçados e chegam a custar até R$ 5,2 milénio por três dias, caso do Camaleão.
“Para nossa surpresa, vimos um conjunto, o Afropunk, que desfila um dia leste ano, remunerar R$ 150 a diária para os cordeiros, por decisão própria. Exclusivamente nos comunicaram. Por outro lado, ainda enfrentamos dificuldades para que o TAC seja cumprido, sobretudo nos blocos afros, incluindo os grandes”, afirma o presidente do Sindicorda, que preferiu não reportar nomes enquanto as negociações com essas entidades não estiverem concluídas.
“A luta dos cordeiros por condições dignas foi consolidada com o TAC. De lá para cá, houve avanços gradativamente. Hoje, foi estabelecido um novo piso, melhorias na sustento, EPIs, seguro de vida coletivo. Ainda há muito o que progredir, mas a conquista recente de um acento permanente pelo Sindicorda no Parecer do Carnaval já representa um salto gigantesco”, afirma a procuradora do trabalho Marina Pimenta, integrante do Grupo de Trabalho do Carnaval do MPT.
Entre os avanços possíveis, tanto Mateus Santos quanto Marina Pimenta destacam a construção de um núcleo de convívio e sota nos principais circuitos da folia: Núcleo (Campo Grande-Terreiro Castro Alves) e Orla (Barra-Ondina). “Os blocos precisam também fornecer chuva gelada para o pessoal da corda. A que eles recebem muitas vezes está morna, sem qualquer refrigeração”, acrescenta o líder sindical e um dos fundadores da entidade em 2006.
A governo municipal, poder público responsável pela sarau, respondeu em nota ao #Colabora, ao ser indagada sobre uma vez que atuará para prometer os direitos da categoria:
“A Prefeitura de Salvador informa que a atividade dos cordeiros e regulamentada. Na lei, há diversas responsabilidades que precisam ser cumpridas pelos blocos de corda para prometer condições dignas de atuação dos trabalhadores. A Prefeitura irá vistoriar e, caso os critérios não sejam seguidos, os blocos podem ter seus alvarás cassados”.
Alheios às promessas, os cordeiros ouvidos para esta reportagem compartilham em generalidade um siso de responsabilidade cumprindo. Sabem que, sem seu suor, nem blocos conseguiriam e nem trios também transpor no Carnaval de Salvador, já que os cordeiros são obrigatórios para evitar o aventuroso contato dos foliões com os trios em movimento. Veem uma vez que exemplo de honra de lucrar de forma honesta qualquer verba, em meio ao desemprego que assola a Bahia, campeã pátrio em desocupados pelo ranking do IBGE.
“Tem mãe e pai de família que me agradece por poder comprar uma TV, um ventilador, poder colocar comida em vivenda, transpor de um sufoco com o trabalho que arranjei pra eles junto comigo nas cordas. Eu sinto que ajudo gente da minha comunidade. Tem família que trabalha unida no conjunto que chega a tirar mais de R$ 2 milénio em todos os dias do Carnaval”, afirma Nice Cordeira.
“Graças a Deus, posso lucrar um extra. Tarefa tá osso. Fazer o quê, cidadão?”, diz Edson Damasceno, ao reportar a célebre sentença eternizada no refrão de um dos hits de Bell Marques, o mesmo que lhe rendeu o maior tortura de sua curso nas cordas.
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