Marianna Holanda e Danielle Brant
(Folhapress) — Presidente da Percentagem de Anistia desde o início do governo Lula, Eneá de Stutz e Almeida se diz decepcionada e surpresa com a postura do presidente a reverência dos 60 anos do golpe de 1964.
O natalício da ditadura militar que durou mais de 20 anos no país ocorre neste domingo (31), sob um silêncio do Palácio do Planalto determinado pelo encarregado do Executivo.
Lula proibiu atos em memória da data e disse, em entrevista no mês pretérito, que não quer permanecer “remoendo sempre” o pretérito e que está mais preocupado com os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023.
“Uma vez que é que o presidente acha que é importante falar sobre tentativa de golpe [8 de janeiro], mas não acha que é importante falar sobre golpe?”, disse à Folha de São Paulo.
Presidente: programação mantida
Da segmento da percentagem, a programação da efeméride foi mantida. Primeiro, fará o primeiro julgamento de reparação coletiva da história do país, com pedidos de desculpas a dois povos indígenas e a um grupo de chineses.
E, depois, uma sessão solene na Percentagem de Legislação Participativa na Câmara, com homenagem a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, perseguida pela ditadura.
Ao lamentar a tentativa de passar em branco os 60 anos do golpe, a presidente da Percentagem da Anistia faz ainda um paralelo entre a fala de Lula e a do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de “passar a borracha”.
“Ambos [Lula e Bolsonaro] falaram a mesma coisa, ‘vamos passar a borracha’, porque o que interessa é a pacificação. Não dá para passar borracha no pretérito, seja 60 anos detrás ou um ano detrás. A gente tem que enfrentar legado de violência e autoritarismo”, disse.
Bolsonaro
Acuado diante do progresso nas investigações em diferentes frentes da Polícia Federalista, Bolsonaro convocou em fevereiro seus apoiadores na avenida Paulista para um ato em seu escora.
Ele fez oração dizendo buscar a pacificação — “passar uma borracha no pretérito, buscar maneiras de nós vivermos em silêncio” — e pediu anistia aos presos pelo ataque golpista de 8 de janeiro de 2023.

Presidente da Percentagem de Anistia critica postura de Lula. Foto: Escritório Brasil
Lula
Lula, por sua vez, dois dias depois, deu entrevista ao programa “É Notícia”, da RedeTV!, e foi questionado sobre quais os planos do governo para o natalício de 60 anos do golpe militar. Na ocasião, o mandatário disse estar mais preocupado com 8 de janeiro do que com 1964.
“O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, permanecer remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma segmento da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou permanecer remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente”, disse.
A fala repercutiu mal entre familiares de vítimas da ditadura. Em uma nota divulgada no dia seguinte, mais de 150 entidades da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia classificaram a enunciação porquê “equivocada” e defenderam que tratar do golpe “não é remoer o pretérito, é discutir o porvir”.
O porta-voz do grupo, Leo Alves, foi além e disse que o sentimento é de “traição”, porque o consideravam um coligado.
Procurado, o Palácio do Planalto ainda não se manifestou sobre as críticas da presidente da percentagem.
A lógica dos familiares encontra ainda respaldo no que defende a presidente da Percentagem da Anistia, de que tratar de 1964 é trazer memória para prometer que não se repita.
Esquecimento
Para Eneá, que também é professora de recta da UnB (Universidade de Brasília), a fala de Lula também trouxe desapontamento, mas ela apresenta uma justificativa jurídica: diz descobrir que o presidente enxerga a lei porquê sendo de esquecimento e de autoanistia.
Nessa proposta, apaga-se o período e não é preciso discutir reparação. Mas ela também questiona esse posicionamento e defende que há brecha na Lei da Anistia para prometer que remanescentes do regime possam ser julgados.
“A lei de 1979 não é uma de autoanistia, é uma de memória. Quem estava recluso pôde ser libertado. Quem estava exilado pôde voltar. E quem não foi nem processado, pode ser processado. Porque os fatos não foram apagados. Logo, não apagamos a história”, disse.
Eneá defende que enfrentar o pretérito dominador do país e o que labareda de tentativa de golpe, em janeiro de 2023, não são excludentes. Ela disse ainda ser ótimo as Forças Armadas não terem embarcado no que chamou de canoa de ruptura institucional: “É o que a gente precisa”.
Por outro lado, defende que os militares peçam desculpas às vítimas do regime, sem susto de melindres. “Me parece que seria, inclusive, um momento bastante adequado, se as Forças Armadas, porquê instituição da República, pedissem desculpas por, lá detrás, terem embarcado nessa proeza golpista e terem participado da ruptura institucional”, disse.
Justiça de transição
No que é considerado justiça de transição, o pedido de desculpas é importante pilar simbólico. Tanto é que o Ministério de Direitos Humanos, nos planejamentos do governo para os atos da efeméride de 60 anos do golpe, pretendia levar adiante pedidos públicos de desculpas. A ação, assim porquê outras previstas para a data, foi vetada por Lula, em mais um gesto à caserna.
A Percentagem da Anistia adotou porquê protocolo, quando assegurou indenização às vítimas nos governos petistas, pedir desculpas em nome do Estado.
Mas, em 2017, quando o presidente era Michel Temer (MDB), há uma mudança de postura do colegiado, que passa a ser mais restritivo nas concessões de reparações e interrompe as desculpas oficiais. Com a chegada de Eneá em 2023, o colegiado retoma a medida durante os julgamentos.
Com o aval do ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos), o colegiado mudou a forma de julgar publicamente os pedidos de indenização, com sessões em conjunto, e assumiu compromisso de, até 2026, rematar com todo o passivo de 7.000 requerimentos. E, com isso, conseguir fechar as atividades da percentagem.
“Esse binômio de memória e verdade ainda precisa ser completado. A própria Percentagem de Anistia tem que terminar de julgar os seus processos”, concluiu.
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