Por Joana de Vilhena Novaes*
Na última quarta-feira repercutiu a notícia de uma cena dantesca ocorrida em um bairro da zona oeste carioca. Farsa espetacularizada, assombro banalizado, tudo devidamente filmado e registrado, porquê convém em uma sociedade em rede. Tratava, pois, do morto de um varão de 68 anos, que havia sido levado por uma mulher (Erika de Souza Vieira Nunes – sua sobrinha e cuidadora) com o objetivo de realizar, em seu nome, um empréstimo no valor de dezessete milénio reais.
Não nos deteremos cá nas inúmeras especulações que uma investigação criminal desta natureza pode gerar. Nosso objetivo é refletir sobre a cena e os sujeitos que dela participavam. Mais especificamente, alguns aspectos dos modos de subjetivação atual que parecem ter contribuído para que o estranhamento, a suspeição e o mal-estar não fossem evocados diante do ocorrido. Em outras palavras, porquê o cenário daquela escritório bancária refletiu, de modo paradigmático, certos valores e costumes da nossa cultura. Observarmos, assim, o já consagrado efeito da frivolidade do mal antecipado com aguda perspicuidade, por Hanna Arendt, em um outro contexto histórico.
Neste sentido, ainda que uma parcela da população tenha expressado aterramento diante do ocorrido, os aspectos, porém, que mais chamaram a atenção foram a naturalização da dor e do sofrimento humano-, expressos através da coisificação do sujeito, com fins utilitaristas. Frases porquê “ele é assim mesmo”, proferidas pela acompanhante, na tentativa de conseguir a assinatura do idoso morto, sem que houvesse uma grande comoção por secção dos sujeitos que participavam da cena, apontam para um evidente proporção de dissociação e negação em relação à sisudez da situação. Deixam revelar, também, o pouco valor atribuído à vida humana.
Trata-se do tabu em relação à morte e, porquê um segundo corolário, um tipo de organização social que associa juventude à boa performance, sucesso e positividade. Da mesma forma, à vetustez atribui-se refugo humano, um interino negligenciável ligado às representações sociais de doença, lentidão e improdutividade. Um olhar sisudo para a cultura do consumo, da obsolescência programada e da impermanência, parece nos mostrar não ter espaço para o tirocínio da tradição contida na figura do velho. Ao final, resta-nos a indagação: quando a termo de ordem é o bem-estar e vigoram as relações mercadológicas entre sujeitos empreendedores de si, quanto valeria um corpo perecível ou perto do termo?
A resposta parece ser um desvalor. Negamos a morte porquê secção integrante da vida. Eliminamos pouco a pouco os rituais coletivos que ajudam a representá-la, assim porquê o luto é também privatizado.
A quantidade de memes e piadas satirizando o incidente, mas, sobretudo, a rapidez com a qual os mesmos foram produzidos, merecem destaque. Tal traje, talvez seja a melhor ilustração da aversão à negatividade enquanto um sintoma social dos nossos tempos. A incapacidade, cada vez mais flagrante, de deixar-se afetar ou solidarizar com o sofrimento alheio. Qual a razão para o humor ter suprimido o assombro e o estranhamento? Não podemos negar, também, porquê o humor nos defende de entrar em contato com o horror.
Sobre isso reflete Walter Bejamin, ao denunciar que a vida nas cidades nos despe da memória das experiências passadas, forçando-nos a estar atentos aos perigos imediatos e, sob o preço de uma irreflexividade, cria modos de resguardo capazes de proteger-nos dos múltiplos choques.
Anedonia, desafetação, esgarçamento do laço social, quaisquer que sejam os termos, -vale sempre lembrar que, na ode a um mundo de espelhos, tudo que resta é solidão!
Se por um lado, o humor é utilizado porquê um dispositivo defensivo, por outro, labareda atenção a reação do mercado, explicitada na reação do banco preocupado com a associação do seu nome ao fenômeno da fraude e da infâmia.
Ainda que digno de investigação: vivo ou morto, velho ou jovem, às margens ou dentro da norma, pranteado ou feito de vaia – por que pensar o corpo?
Porque, assim porquê Foucault, acreditamos que toda genealogia do poder passa pelo corpo. Toda a história humana, toda a sociedade, toda a singularidade existencial é experimentada e vivida nos corpos reais dos que vivem ou viveram. Se quisermos portanto saber do mundo humano, da sociedade, de nós mesmos, devemos olhar para os corpos vividos, pois é no corpo que se inscreve a história humana e a história de um único quidam, porquê nos lembra Lévi Strauss.
Norbert Elias, em dois ensaios, respectivamente, A Solidão dos Moribundos e Envelhecer e Morrer, aborda o processo civilizatório da sociedade e dos indivíduos e os modos por meio dos quais se instalam, em cada um de nós, os sentimentos de constrangimento, temor e embaraço em relação a tudo que lembre a finitude da vida biológica.
O sociólogo nos leva a refletir sobre os inúmeros terrores que envolvem o traje de envelhecer e morrer ressalvando, no entanto, que o constrangimento social e a áurea de desconforto que, frequentemente, muro a esfera da morte em nossos dias é de pouca serventia para uma mudança de valores e atitudes frente à questão. O solidão dos velhos e moribundos do convívio social é o sinal mais evidente da não identificação entre os jovens e os que estão envelhecendo e morrendo.
Mas por que falar disso tudo?
Nenhuma veras humana prescinde de dimensão social. A singularidade da dor (física ou psíquica), enquanto experiência subjetiva, torna-a um campo privilegiado para pensarmos a relação entre o quidam e a sociedade. Toda experiência individual inscreve-se num campo de significações coletivamente elaborado.
Quem hoje recusa a “fatalidade” da lógica econômica é tachado de sonhador, quando não de “neobobo”, na feliz sentença de Moacir Werneck de Castro para escolher os “não-alinhados” à ideologia da globalização liberal. Entretanto, frisamos o quanto é simplório pensar que um sistema que produz tantos excluídos irá eternizar-se. Acreditamos que, cabe aos homens e mulheres do século XXI, e também à Universidade, tecer novas tramas para um horizonte mais justo e inclusivo onde não haja lugar para que unicamente os “economicamente arianos” sobrevivam.
* Psicanalista, Pós-Doutora em Psicologia Médica e Social/UERJ, Profa. do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade – UVA, Coordenadora do Laboratório de Práticas Sociais Intregaradas LAPSI/UVA, Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Mediação Social LIPIS/PUC-Rio, Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine – Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM-Pandora
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