Brasil

Uma poeta à espera das flores

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Compartilho neste texto a leitura que fiz de Goela Seca, de Jô Freitas poeta periférica, integrante do Sarau Pretas Peri. O livro, produzido de forma independente, teve o feito de chegar entre os cinco finalistas do último Prêmio Jabuti na categoria conto. Publicado em 2023, a obra é um marco na carreira da autora, posto que é sua estreia em prosa depois de mais de dez anos dedicados à poesia. Mas o livro é também um divisor de águas na vida da atriz, dançarina e poeta, ou cenopeta como ela se define artisticamente.

Goela Seca é a expressão literária do reencontro da autora com suas origens: o sertão da Bahia, território do qual foi desterrada quando tinha apenas cinco anos. Jô veio com a família para a periferia de São Paulo nos anos 1990, onde formou sua personalidade na cultura urbana sem nunca ter perdido a referência do Nordeste por conta dos pais. Passaram-se trinta anos para ela estabelecer essa reconexão que de tão vital, é possível dizer que se trata de um renascimento ou um novo ciclo.

O livro tem 23 textos elaborados com notável esmero literário e distribuídos quase que equitativamente em três capítulos. Na terceira parte a autora não resiste ao seu ímpeto, dando um acabamento poético aos derradeiros textos do livro em manifestações líricas de dor e afirmação. Jô enaltece sua terra ao apresentar o livro em vídeos nas redes sociais: “sertão da Bahia é que são meus verdadeiros pais”. Mas, o contexto explorado nas narrativas não extrapola o quintal de sua casa e o roçado do pai que poderia estar em qualquer lugar da Bahia e do Nordeste.

Tal percepção se justifica pelo fato de ela ter saído ainda criança de sua terra natal. Talvez por isso, os nomes das localidades não sejam mencionados, tampouco a própria Bahia. A autora justifica que a sua memória é escassa e fragmentada. Mas, ela soube fazer um uso muito bom dos recursos literários para reconstituir um passado tão distante, mas que é perto ao mesmo tempo. Digo isso porque entendo que a fonte da memória para a autora é menos o território e mais a família, embora uma não seja dissociado do outro.

Foi daqui que eu vim

Goela Seca é, portanto, um reencontro da autora com sua família. Os textos dela falam de suas irmãs que no livro tem nome de Joana e Perla, com as quais brincava de bonecas de sabugo de milho; de seu pai como agricultor e não como o pedreiro profissão que adotou em São Paulo; de sua mãe que é retratada brilhantemente no conto Sebo, no qual a autora narra seu próprio nascimento. Nessa ode à sua genealogia, Jô dá um destaque muito especial a seus avós com abordagens bem distintas, mas, sempre afetuosas e tensas também.

A avó é retratada como uma pessoa de personalidade forte, algoz de galinha (Janeca) e que não reconhece, por ignorância, suas origens indígenas e negras (Cabelo de bucha). Mas, a matriarca é lembrada pela autora com devoção, especialmente no conto Quando minha vó morrer e em Sebo nos quais aparece como contadora de histórias e parteira, respectivamente. Já o avô é traçado como ranzinza, cruel e seboso. O Velho causava nojo e medo na menina que carregou para toda a vida uma lembrança perturbadora. Como ela vivia se esquivando do avô, numa dessas acabou, sem querer, vendo-o nu ao sair do banho e se espantou com o saco dele esticado até a altura dos joelhos (Saco do vovô). O perfil do avô e essa fixação por suas genitálias está presente também no conto Eu bagos que tem um tom irônico.

Concluo assim que a memória da família é a chave de leitura mais pertinente para compreender o livro no seu conjunto. No conto Foi daqui que eu vim, ela fala: “(…) cheguei com a sola/rachada do meu avô/(…) parteira minha avó/no riso caboclo de meu pai/nas mãos de calo de minha mãe (…)”. Sendo assim, o contexto marcado pelo território é um elemento importante, porém, menos relevante. Essa chave muda um pouco nos textos que se passam na Ocupação na qual a família vem morar na periferia de São Paulo, cidade tampouco citada, exceto quando mencionada no conto Quebranto que narra a morte do tio que se mudou para SP e só voltou para a Bahia como notícia fúnebre.

Desembocando chinelos

Por sinal, a morte é um tema importante no livro. Logo na dedicatória ela cita os “túmulos que tive de fechar” e lista seis pessoas, entre as quais o referido tio Giovani e Antonio Henrique, poeta morto em 2018 que era seu companheiro a quem ela dedicou o conto em prosa poética Mofo, cujos primeiros versos são arrebatadores: “Um cigarro suspirava/socorro em cima da mesa/ gasta de saudade”. Composição que lembra uma a letra de Abel Silva para uma antiga canção de Fagner: “essa saudade/o cigarro, a luz acesa/ e a noite posta sobre mesa… “ (Asa Partida, Raimundo Fagner, 1976).

Seis anos após sua morte, Antonio Henrique continua sendo uma lembrança muito forte para autora, a quem costuma homenagear citando um verso dele: “se as flores esperam pela primavera, eu esperarei o tempo que flores” (Flores, Jô Freitas, 2018). Esse prolongado luto nos faz entender a epígrafe de bell hooks que abre Goela Seca: “ contemplar a morte sempre me leva de volta ao amor”.

Observando a produção poética da autora em seu citado livro solo Flores e nas suas participações em antologias, é possível perceber que o luto adquiriu uma centralidade na vida da autora. Tal percepção fica nítida nos versos: “descobri a morte com 27 anos/pensei que eu tinha um feitiço ruim/será que as pessoas morrem quando me conhecem?/joguei cartas e búzios e perguntei se eu tinha coisa ruim de família/castigo ou coisa assim/uma foi assassinada/um se matou/um morreu por acidente/outro assassinado” (Ando no escuro para aprender a guiar os que vêm depois. Narrativas Pretas, Sarau das Pretas, 2020). Talvez, por essa razão, Jô use algumas vezes no livro Goela Seca a expressão bem nordestina “desembocando chinelos” (Desamparinho) que, segundo a crença popular, afasta a morte.

A goela como centro da existência

A expressão “goela seca” é forte como imagem poética e a autora a usa tanto quanto sugere o título do livro. Mapeei algumas. No conto Deuzulivre são duas: “era seco o chão e seca nossa goela” e “Mamãe, que mais seca que nós, carrega um rio nos olhos toda noite, por que faz de nós goelas secas”; há uma outra em Derradeiro (“a golela pedia água e mamãe não dava, papai não pedia água, só bebia uma vez para engolir a comida seca …”). Em ambos, o contexto das histórias é a sede e o trabalho penoso na roça debaixo do sol ardente. A terceira menção está no texto poético Depois do Fim…, no qual o termo adquire uma dimensão metafórica: “empurrei goela adentro/mas a poesia queria/estilhaçar goela fora”. Finalmente, como um epílogo, a autora em tom de sentença declara: “goela seca/por si só/ já podia bastar”.

O uso do termo goela seca remete às expressões do cotidiano como “engoliu seco” ou “empurrou goela abaixo” que transmitem uma ideia de opressão. Tal sentimento está muito presente na poética de Jô Freitas. Por isso, ela vê sua poesia como enxurrada violenta, pois é um revide. Escrevo por vingança é o título de um de seus poemas mais conhecidos, no qual manifesta seu repúdio aos patrões da avó, da mãe, da tia e da irmã, todas empregadas domésticas. Ela contrariou esse destino; virou escritora. Uma poeta de punho erguido e que agrega o teatro para reforçar sua expressão combativa.

Talvez por isso o termo “vomitar” apareça com quase a mesma frequência do que “goela seca”. O ato de regurgitar também tem muita força como metáfora, logo, tem um potencial poético elevado. No conto Quebranto já citado, no qual ela aborda a morte do Tio, sua avó “engolia o soluço e vomitava a dor pelo olhar congelado”. Em Cabelo de Bucha, a Avó, mais uma vez protagonista, discorre sobre o saber empírico do parto: “quando se nasce tem que vomitar o choro, para quando grande poder engolir”. Finalmente, em Alzira (o melhor conto do livro e o mais doloroso), a narradora fala sobre a personagem, que vive o luto do marido agressor, “aprendeu a engolir a dor e agora, vomita verdades”, uma formulação literária vigorosa que sintetiza o que é a própria literatura de Jô Freitas.

Se engolir é aguentar, vomitar é se libertar. Ambos os sentimentos passam pela garganta, ou melhor, pela goela. Para quem sentiu o que é a fome e sede, a goela é o centro da existência. Por isso Jô Freitas no texto manifesto Depois do Fim… afirma: “Molhar a goela, usar quantas vezes for/para você não enjoar da palavra goela/invente outra e me tire essa dor”. E dessa forma Goela Seca é um divisor de águas, como disse no início. Aqui cabe bem essa expressão que, de tão usada, virou clichê. Jô não quer mais secura, quer virar rio e, nesse sentido, voltar a Paulo Afonso, sua cidade natal, é um dado que corrobora a disposição da autora. Banhada pelo Rio São Francisco, a cidade baiana tem água em abundância e lá fica uma famosa cachoeira. Um bom lugar para a poeta, finalmente, encerrar a espera e “aflorar”.

Uma poeta à espera das flores
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