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A realidade argentina nos 6 meses de Milei

“Não há dinheiro”, gritou Javier Milei em sua posse, em 10 de dezembro passado, numa quente manhã do verão portenho, diante do Congresso Nacional. Seus eleitores, sem se assustar com o anúncio de grandes ajustes, o aplaudiam e gritavam: “Milei, amigo, o povo está contigo”.

Seis meses depois, o excêntrico presidente argentino coleciona cifras contraditórias. Se por um lado sua alta popularidade se mantém — 58,7% de imagem positiva, segundo a Giacobbe & Associados — a pobreza atinge a cifra de 55%, de acordo com dados oficiais. Se a inflação vem caindo — de 26% ao mês no começo do ano para os 8% atuais —, a classe média e a população mais humilde não têm sentido alívio. Com o fim de vários subsídios, as contas de luz, água, gás e transporte dispararam. Por outro lado, o país teve, pela primeira vez em muitos anos, um superávit fiscal.

“Assim, vou ter de deixar de usar o metrô e me deslocar apenas de ônibus e andando”, diz Martín de Francisco, 52, vendedor em uma loja de artigos para construção, na bilheteria da estação Obelisco, no centro de Buenos Aires. Todos os dias, ele toma dois ônibus para chegar ao centro desde sua casa, na periferia de Buenos Aires. O metrô, que torna mais curto o trecho final de sua jornada diária, passou, em junho, de custar 125 pesos (R$ 0,73) para 574 (R$ 3,37). O alto custo de vida atinge todas as classes. Um café simples e um suco de laranja no café do Teatro Colón, muito frequentado por turistas brasileiros, por exemplo, sai 8.600 pesos (R$ 50,46). “Já não dá para ir a um restaurante mais de uma vez por semana, um cinema ou um teatro, só de vez em quando”, afirma María Paz, 43, publicitária que vive em Palermo, bairro de classe média e alta de Buenos Aires.

Apesar das dificuldades para chegar ao fim do mês, porém, a maioria dos entrevistados que apoiam Milei afirmam que confiam no presidente. “Ele avisou que seriam tempos difíceis. Além disso, voltar ao que tínhamos antes é impensável. O país está como está por conta dos governos peronistas”, diz Matías Durango, 21, recém-formado em administração pela Universidade de Buenos Aires, que ainda está buscando emprego.

O maior ajuste tem sido sentido pelos aposentados, que tiveram uma redução de seus rendimentos em 31%.

“A chave da explicação do superávit do país e da contenção da escalada inflacionária é o aumento de impostos e a redução das aposentadorias, não se trata de um plano estruturado. O governo tem usado essa narrativa para manter sua popularidade e para tentar atrair o investimento estrangeiro. Trata-se de uma cifra artificial, que não tem como se manter no tempo se não houver um crescimento do país e uma revitalização da economia”, diz ao Meio o economista liberal Roberto Cachanosky.

“Na última década, a economia argentina vinha acumulando déficits fiscais enormes, que eram financiados pela emissão monetária, o que gerava uma quantia muito grande de pesos no mercado, e por sua vez acelerava o processo inflacionário. Para evitar que o dólar subisse, os governos anteriores drenaram as reservas internacionais. Milei interrompeu esse processo, mas tem falhado em organizar um plano para o longo prazo”, diz Martín Kalos, economista e consultor, formado pela Universidade de Buenos Aires.

O avanço de suas estratégias chamadas de “motosserra” (corte de gastos públicos) e “liquidificadora” (promovendo ajuste pelo arrocho inflacionário) conseguiram reduzir a inflação e o gasto público. Por outro lado, causaram mais de 275 mil demissões, e reduziram a atividade econômica em oito pontos percentuais. “A Argentina hoje é um país em recessão. As medidas que Milei tem tomado servem para manter seu discurso de rompimento com as políticas anteriores, mas falta uma estratégia clara. Difícil pensar que isso se manterá com o tempo”, diz Cachanosky.

Reformismo barrado

Desde o princípio de sua gestão, Milei tem defendido uma ampla reforma trabalhista, fiscal e tributária, contida na Lei de Bases, mais conhecida como Lei Ônibus, pois, em sua origem, tratava-se de um conjunto de mais de 600 artigos.

O Libertad Avanza, partido do presidente, porém, não tem maioria nem na Câmara de Deputados nem no Senado, o que tem dificultado a aprovação de qualquer legislação. Enquanto seus antecessores, Mauricio Macri (centro-direita), Alberto Fernández (centro-esquerda) e Cristina Kirchner (esquerda) não demoraram mais de um mês em aprovar suas primeiras leis, Milei ainda não conseguiu aprovar nenhuma. A Lei Bases chegou a ser aprovada numa primeira versão pela Câmara de Deputados, no começo do ano, mas foi retirada do Congresso pelo próprio Milei, ao considerar que havia sido demasiado desidratada. Uma nova versão, também desinflada, foi aprovada em abril pela câmara baixa, depois de uma longa negociação com a oposição.

Agora, ela se encontra em debate no Senado. A perspectiva é que seja aprovada também nessa casa, mas com várias modificações e concessões. Com isso, terá de voltar à Câmara para nova votação.

Milei viu frustrado, então, seu projeto de amarrar um “amplo acordo nacional”, que seria celebrado por ele e os governadores de províncias (todos de oposição), no último dia 25 de maio, data do festejo da Revolução de Maio, que marcou o início da independência argentina. O presidente, em vez disso, usou a data para reforçar suas bandeiras, num ato no centro da cidade de Córdoba, onde obteve mais de 70% dos votos nas eleições.

Milei foi eleito em novembro do ano passado com mais de 14,5 milhões de votos. Sua campanha se armou em torno do sentimento anti-peronista que há na sociedade. Este se acentuou no fim da gestão de Cristina Kirchner (2007-2015), quando casos de corrupção do governo foram desvelados num contexto de degradação econômica, e durante a pandemia, quando a rígida quarentena imposta pela gestão Alberto Fernández (2019-2023) se tornou impopular e começou a unir a juventude de classe média e mais pobre em torno do discurso de que o Estado não deveria interferir na vida privada das pessoas.

Milei conseguiu capitalizar esse sentimento ao se eleger deputado, em 2021, abrindo espaço para sua candidatura presidencial. Mais de 20% de seu apoio hoje é composto por uma população masculina, entre 18 e 30 anos, que mora nas periferias das grandes cidades e que começou a cultivar nessa época.

Milei se define como anarcocapitalista e libertário. Segundo essa doutrina, o Estado deve ser mínimo e, mesmo, não existir. Entre os intelectuais que mais admira, cita sempre o teórico norte-americano Murray Rothbard (1925-1995), membro da escola de economia austríaca, defensor que a iniciativa privada poderia substituir o Estado em várias atribuições. Ficou conhecido por suas ácidas críticas ao marxismo e ao keynesianismo.

Há diferenças importantes entre o liberalismo e o libertarismo. O primeiro nasceu no século 17 na Inglaterra e na França como uma reação ao absolutismo monárquico. Defendia a propriedade privada e a ideia do laissez-faire (deixar fazer), segundo a qual a mão livre do mercado deveria regulamentar os distintos aspectos da vida humana.

Já o libertarismo é uma filosofia minoritária que se apoia no liberalismo, mas é mais radical. Nasceu também na Europa, depois da Segunda Guerra mundial, e defende os individualismos e a dissolução quase total da política, vista como corrupta e defensora apenas de seus privilégios. Na versão argentina, Milei chama esse grupo de “casta”.

O único “país” a adotar o libertarismo de modo geral foi a república livre de Liberland, uma autoproclamada pequena nação situada nos Balcãs. Sem ser reconhecido pela comunidade internacional, Liberland tem uma bandeira, de cor negra e amarela, e um super-herói, o capitão Ancap, cujo uniforme Milei já vestiu em campanha e em shows.

Dois sentimentos

Para o consultor político Jorge Giacobbe, os argentinos hoje se movem por dois sentimentos. “Um grupo, majoritário ainda, tem esperança. Sabe que está sofrendo, mas vê uma luz ao fim do túnel. É como se estivessem fazendo um tratamento ou uma dieta, com um final compensatório”, afirma.

O segundo grupo estaria tomado pelo descontentamento, pela tristeza. Seriam pessoas que não gostam de Milei, mas não veem uma outra opção, pois as demais alternativas estariam esgotadas. Assim estaria vivendo 45% da opinião pública. “Os portenhos têm duas praças, a de Maio, onde ocorre a maioria dos protestos contra o governo, é o espaço da bronca, da raiva. A do Obelisco é a da alegria, onde se comemoram vitórias políticas ou do futebol. Mas não há uma praça para a tristeza e o desânimo, que é o estado em que estão os que não gostam de Milei. Por isso ainda não há muitos protestos”, afirma.

Nos últimos seis meses, tem havido manifestações, pequenas e setorizadas, de sindicatos e de trabalhadores de áreas que vêm sofrendo ajustes. O único protesto mais transversal, e que levou centenas de milhares de pessoas às ruas em todo o país, foi o que se deu em defesa da educação pública, no último dia 23 de abril. Sob a ameaça de Milei de cortar o orçamento de universidades, professores, alunos e ex-alunos saíram para se manifestar com cartazes que evocavam, entre outras coisas, o fato de a Argentina ter sido uma pioneira em projetos massivos de alfabetização e educação laica e de possuir três prêmios Nobel na área científica. Os mais divertidos eram os que faziam menção ao adorado cachorro de Milei, Conan, morto em 2017, a quem o presidente consulta por meio de uma médium quando tem de fazer escolhas políticas. “Sem ciência, não há Conan”, diziam, em referência ao fato de Milei ter mandado clonar seu mascote favorito. O fruto desse processo foram cinco filhotes, com quem o mandatário vive atualmente.

Conversar com Conan é apenas um dos aspectos que compõem a excentricidade de Milei. Sua personalidade pública começou a ser construída em suas aparições nos principais programas de debate político da Argentina. Estes dominam o horário nobre e são marcados pelo formato de espetáculo, conhecidos no país como o mundo da farándula. Milei começou a ser convidado para fazer análises econômicas, mas seu estilo agressivo, movido por insultos e gritos contra os governantes, passou a dar mais audiência a esses programas. O atual presidente começou a se soltar, fazer covers musicais, dançar, dar conselhos sobre sexo tântrico e contar detalhes de seus ménages.

Nascido em uma família de classe média, teve a infância e a adolescência marcadas pelas surras que recebia do pai. Ficou sem falar com ele e a mãe por décadas, e seu principal suporte emocional é a irmã. Hoje, seis meses depois da posse, Karina Milei é uma das principais figuras da gestão. Enquanto o mandatário se concentra na economia, todo o trabalho de gerenciar ministros e dialogar com a Justiça e o Congresso está nas mãos da irmã, a quem Milei chama de “o chefe”, no masculino mesmo.

O biógrafo de Milei, Juan Luiz González, afirma que isso não é uma surpresa. “Karina sempre cuidou dele, e sempre esteve presente em seus momentos difíceis, quando teve episódios depressivos, quando morreu Conan e durante o isolamento da pandemia. E é também a pessoa que o ajudou a planejar todos os passos de sua chegada à presidência”. Milei teve poucos relacionamentos abertamente conhecidos. O mais recente, com a atriz e comediante Fátima Flores, terminou após a posse. Milei explicou publicamente que apesar de amá-la, queria concentrar-se mais no trabalho.

Karina ocupa a Secretaria Geral da Presidência, cargo criado por Milei depois de derrubar um veto à contratação de familiares de políticos. Como o atual presidente vai pouco à Casa Rosada, que considera como “mais um museu do que um lugar de trabalho”, é Karina quem comanda reuniões e está por dentro de tudo o que se fala em seus corredores. Milei prefere trabalhar da residência de Olivos e tem pouco contato cotidiano com seus funcionários. “Milei e Karina são duas partes de um mesmo cérebro”, diz Giacobbe.

Unidos da ultradireita

Um dos aspectos mais controversos de sua gestão tem sido o campo das relações internacionais. Durante a campanha, Milei afirmou que não teria relação com líderes de países “comunistas” e deu como exemplos a China, o Brasil e a Espanha. Ao ser indagado sobre Lula, Milei afirmou que era “um corrupto”, e que deveria continuar preso.

Depois de eleito, passou a viajar muito. Só que de uma maneira muito diferente da maioria dos líderes mundiais. Em geral, com uma agenda particular na qual marca sua sintonia com a ultradireita internacional.

Milei já visitou os EUA quatro vezes, mas jamais pediu para se reunir com Joe Biden. Ao contrário, foi a um congresso conservador onde abraçou Donald Trump e afirmou que desejava sua vitória no próximo pleito. Também se encontrou mais de uma vez com Elon Musk, do X. Deu entrevista aos polêmicos comentaristas políticos Ben Shapiro e Tucker Carlson.

Na Espanha, por outro lado, Milei causou um escândalo diplomático. Foi ao país, culturalmente de enorme influência na Argentina, e não quis se encontrar com o líder socialista do país, Pedro Sánchez. Compareceu a um festival do Vox, partido de extrema direita espanhol e, em seu discurso, chamou a mulher de Sánchez de corrupta. O espanhol, então, retirou sua embaixadora de Buenos Aires e esteve muito próximo de cortar as relações com a Argentina.

O mesmo ocorreu com a Colômbia, governada pelo esquerdista Gustavo Petro. Quando Milei foi eleito, o colombiano usou suas redes sociais para chamá-lo de “fascista”. O argentino retrucou em termos também fortes, afirmando que Petro era um “assassino” — fazendo referência a seus anos como integrante da guerrilha do M-19. Petro mandou, então, expulsar a representação diplomática argentina de Bogotá. As relações só voltaram a se normalizar depois de a chanceler argentina, Diana Mondino, tomar a iniciativa de iniciar um diálogo com o governo colombiano. As relações entre os dois países, então, foram restabelecidas.

Mondino, uma das principais ministras do gabinete, vem atuando como uma espécie de bombeiro que aparece depois das crises armadas pelo mandatário para tentar pacificar o ambiente. Com relação à China, foi ela que viajou a Pequim para pedir que as declarações de Milei contra o país fossem relativizadas.

Foi também Mondino quem veio ao Brasil para conversar com o ministro Mauro Vieira e reafirmar que o atual governo argentino deseja continuar tendo sua relação bilateral com o país como prioridade. O Brasil é o principal parceiro econômico da Argentina na região.

O governo Lula, porém, segue dando sinais de que se sentiu ofendido pelas declarações de Milei e pelo fato de ele ter convidado o ex-presidente Jair Bolsonaro para sua posse.

Em sua tentativa de aproximar os dois líderes, Mondino esteve no Brasil duas vezes. Na segunda, em abril, levou ao chanceler Mauro Vieira uma carta escrita por Milei, convidando Lula para um encontro. O brasileiro ainda não a respondeu e, na única vez em que foi perguntado sobre ela, num almoço com jornalistas em Brasília, afirmou que ainda não a havia lido.

Os dois líderes devem se encontrar na próxima reunião do Mercosul, em julho, no Paraguai. A relação de Milei com o bloco também é uma incógnita. Depois de anos afirmando que preferia que fosse extinto e que a Argentina pudesse relacionar-se comercialmente de modo independente, Milei tem baixado o tom das críticas.

“Ele parece ter se dado conta de que precisa das relações com o resto da região. Se quer novos investimentos para o país, terá de se relacionar com os países da América do Sul, embora não goste de seus principais governantes”, afirma Cachanosky. Em seis meses, a realidade diplomática já se impôs.

*Sylvia Colombo é historiadora, jornalista especializada em América Latina, colunista da ‘Folha’ e vive em Buenos Aires. É autora de ‘O Ano da Cólera’

A realidade argentina nos 6 meses de Milei
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